Arlindo Silva


Por Ivo Martins

Coração e cinzas — Arlindo Silva
Guimarães: Centro Cultural Vila Flor, 2014

O acto de pintar simboliza também um gesto de coragem e de humildade. Terminado um século marcado por duas guerras mundiais, do qual emergiram manifestações artísticas fulgurantes, avanços tecnológicos, revoluções, mudanças políticas, sociais e de costumes, uma lógica demolidora das ideias vanguardistas veio proclamar o culto da novidade a qualquer preço.
A pintura figurativa tem atravessado um período difícil de relativo apagamento e subvalorização, por vezes olhada como património quase arqueológico, proveniente de uma época remota e grandiosa que não voltará a repetir-se. Prevalece a obrigatoriedade de inovar e o impulso de conceptualizar e intelectualizar a novidade ao mesmo tempo que se reduz o espaço ao artista figurativo que não deseje comprometer-se com a tirania mediática da imagética contemporânea. As práticas artísticas mais antigas e com mais história são relativizadas em proveito de abordagens estéticas multidisciplinares e tecnológicas, onde o presente só parece poder afirmar-se em conflito com o passado.
Numa realidade artística exposta ao niilismo de uma sociedade mediatizada, sobrevém uma lógica de mercado concorrencial que diviniza o artista/estrela, deixando pouca margem de sobrevivência a práticas como a de pintar.
A pintura necessita de um tempo de produção mais lento, um intervalo adequado entre princípio e conclusão. Quem quiser aventurar-se neste terreno movediço e fugaz da mediocracia e da mercantilização dos espaços de actuação artística, procurando explorar momentos sublimes de celebração da vida, dificilmente conseguirá resistir à estranha sensação de dejà vu que uniformiza tudo aquilo que se produz.
Trabalhar a solidão ou a dor, a energia do pensamento ou a liberdade, a desilusão ou o desespero, o amor ou o desapontamento, a força cruel da natureza ou a sua exaltação, a contenção, o tédio, a revolta..., requer uma predisposição particular para aceitar as dificuldades de representar tais temáticas.
O presente de qualquer obra possui simultaneamente dois espaços temporais – o passado e o futuro – pelo que a sua superfície de identidade só é plenamente alcançada quando atravessa estes dois espaços, sendo capaz de se situar perante o primeiro, e de estabelecer um ponto de ligação com o segundo.
Para o pintor, as probabilidades de fracassar na “teimosia de reinventar um ofício dado como perdido”, como constata Lévi Strauss, são numerosas. É também por isso que as dificuldades inerentes ao exercício da pintura nos dias de hoje, tornam-na uma actividade meritória.
O trabalho do Arlindo Silva dá continuidade a uma prática artística intemporal. Sobre uma superfície plana – a tela – o pintor combina uma matéria concreta – as tintas, e assim regista factos de seu universo pessoal, reiniciando uma nova proposta de inteligibilidade no campo sensível da materialidade do quadro.
Porque a sua obra ainda não obteve a atenção pública que merece, esta exposição vem colmatar uma evidente lacuna no panorama das artes em Portugal, reunindo sem uma orientação retrospectiva um número expressivo de trabalhos.
As pinturas do Arlindo Silva: pessoas do seu círculo de relações captadas em instantâneos algo inesperados, anti-retratos que negam a tradicional pose das figuras retratadas, perpassam uma atitude desafectada e discreta, que é também transversal ao seu percurso artístico e humano.
A sua obra é honesta; nela ressalta a veracidade das disposições e movimentos dos corpos, que revelam timidamente estados de espírito - olhares, esgares, sorrisos, tensões; estados de êxtases ou de exaltação, sugerindo que chegamos ao interior do decorrer de uma história.
Pela ausência de formalismo, a força de cada trabalho assenta na quebra das rotinas, no plano inesperado de cada momento, na desconstrução de uma prática figurativa, que disseca o quotidiano e da qual sobressai uma plenitude quase cinética entre formas visíveis e palavras que imaginamos serem ditas.
A tensão ou distensão inscritas nos semblantes e na disposição dos corpos, em fundo geralmente neutro e de localização indefinida, fundem-se em referências de um real descrito por imagens, transmitindo contenção e despojamento, apesar da sua exposição quase sempre excessiva;  os momentos de sociabilidade sobreexpostos, acabam por nos revelar o seu reverso: uma inevitável sensação de abandono e solidão. 
O maior atributo a conceder à pintura do Arlindo Silva é afirmar que se trata de um trabalho que apela à pureza da representação pictórica, sem artifícios nem disfarces, alargando o campo de actuação artística significante, feito de sensações entre a beleza do que se vê, do que se faz e do que se diz.